Cidade

Vitor Friary: Trauma psicológico da guerra urbana no Rio – Diário do Rio de Janeiro

Vitor Friary: Trauma psicológico da guerra urbana no Rio – Diário do Rio de Janeiro
  • Publishedoutubro 29, 2025
Vitor Friary: Trauma psicológico da guerra urbana no Rio – Diário do Rio de Janeiro

Carta do papai Noel
Rua na região do Complexo da Penha durante megaoperação em 28 de outubro de 2025 – Foto: Reprodução/SBT News

A maior operação policial já registrada no estado transformou os Complexos do Alemão e da Penha em um cenário que a imprensa internacional descreveu como “zona de guerra”. Helicópteros cortando o céu, blindados avançando pelas vielas, drones em confronto com drones, granadas, barricadas em chamas. Em um único dia, mais de 130 pessoas foram mortas, entre eles moradores, acusados e policiais. Escolas fecharam, unidades de saúde interromperam atendimentos, famílias inteiras se trancaram em casa, crianças se esconderam embaixo das camas tentando controlar o tremor das mãos.

Não se trata de um episódio isolado. A violência armada nas favelas do Rio é antiga e repetitiva. Só que cada vez mais, assume contornos de combate militar. Para quem vive ali, a guerra não é metáfora; é cotidiano. E se há guerra, há trauma. Um trauma coletivo, duradouro, difícil de nomear e impossível de ignorar.

Na psicologia do trauma, sabemos que não há abalo emocional maior do que perceber que o lugar que deveria ser seguro, como a própria casa, o próprio bairro, se tornam o foco do perigo. A favela sob operação é um território suspenso: a vida pausa, o corpo reage como se estivesse se preparando para o morrer.

O som dos tiros não vem da TV, eles atravessam paredes, e marcam as ruas por onde os moradores passam. E, para o cérebro, não importa se o risco é real ou potencial. O medo constante e incontrolável desencadeia um estado de alerta permanente: o que chamamos de hipervigilância. Acompanhada de dificuldade para dormir, taquicardia, crises de ansiedade, irritabilidade, sensação de que “algo terrível vai acontecer a qualquer momento”. O corpo vive em guerra, mesmo quando o confronto cessa.
Há quem diga que a população das favelas se acostumaram à violência. Mas não existe adaptação saudável ao terror. O que existe é sobrevivência, uma habilidade aprendida pela dor.

A infância sequestrada pela violência
Em uma comunidade cercada por tiros, as crianças crescem aprendendo códigos de sobrevivência antes mesmo de aprender a ler, e pasmem ainda estamos no mês que celebramos as crianças. Entretanto, reconhecer o calibre das balas pelo som se tornou brincadeira, abaixar-se ao ouvir estampidos se tornou para essas crianças reflexo automático.

Os impactos psicológicos são profundos: comprometimento da aprendizagem e da atenção, distúrbios de sono, aumento de comportamentos regressivos (voltar a urinar na cama, por exemplo), ansiedade que pode marcar para toda a vida e desencadear sintomas de um transtorno de estresse pós traumático (TEPT).

A violência imprime uma pedagogia perversa: ensina que o mundo não é seguro para existir.

As operações policiais deixam cadáveres e cicatrizes. Mas deixam também silêncios. Quando os tiros cessam e os helicópteros se afastam, o barulho permanece dentro da cabeça. O trauma se instala em camadas pouco a pouco. De forma individual (perdas, memórias doloridas desse dia que ficam retornando a mente e assombrando os sobreviventes), de forma familiar (interrupção da rotina da casa, medo constante de separação e perda de entes queridos), e de forma coletiva: um bairro que deixa de confiar em si mesmo.

O medo coletivo é também político, reorganizando os laços comunitários, abalando o senso de pertencimento e instalando a sensação de que “ninguém está a salvo”.

E há um efeito especialmente cruel: a normalização. No dia seguinte, as pessoas seguem a vida. Porque não têm alternativa. Mas seguir vivendo não é o mesmo que estar bem e viver com qualidade.

Pesquisas mostram: a favela vive uma guerra sem fim
Estudos recentes revelam algo essencial para entender o trauma urbano. A violência policial não é um ponto fora da curva, é estruturante.

A pesquisa de Rodrigues e Albernaz (2022) demonstra que o conjunto de ações reunidas sob o termo “operação policial” produz a favela como um lugar marcado pela violência, reforçando desigualdades históricas e legitimando o uso recorrente da força letal em áreas pobres e racializadas. Ou seja, não se trata apenas de combater o crime. Trata-se de ritualizar a guerra em determinados territórios.

Um estudo de Menezes (2015), por sua vez, revela que mesmo quando o discurso muda, como no período das UPPs, a experiência vivida pelos moradores continua sendo a de “vida sob cerco”, como se existisse um “campo minado” invisível em que cada passo pode representar uma ameaça. O medo deixa de ser ocasional e passa a ser uma forma de vida. A favela nunca descansa.

Saúde mental dos policiais
Na contramão de discursos simplistas, preciso afirmar que os agentes de segurança também sofrem. Trabalhar sob risco extremo, mal remunerado, sem apoio psicológico adequado e em dilemas éticos permanentes é um terreno fértil para ideação suicida e suicídio, abuso de álcool e outras drogas, ansiedade e depressão severas, assim como traumas que se acumulam no corpo e na memória. E nisso aprendemos que a guerra urbana não poupa ninguém.
Qualquer operação desse porte produz uma ferida política. Mas o silêncio pós-operatório é quase um protocolo informal, de não falar, não lembrar, não elaborar. Não há rituais públicos de cuidado. Não há políticas adequadas de reparação do sofrimento. Não há espaço para que a dor seja reconhecida. Ninguém trata a favela como sobrevivente, mas é exatamente isso que ela é.

Trauma é saúde pública
Se o Estado é protagonista da violência armada, também deve ser protagonista da cura. Isso exige reconhecer que segurança pública não pode ser reduzida a confronto e estatística.

Se saúde é ausência de ameaça, então a política atual falha brutalmente.
Três caminhos são urgentes. Primeiramente a aplicação de medidas de psicologia comunitária que envolva o acolhimento as pessoas envolvidas, a criação de grupos de apoio, que ofereçam escuta ativa dentro das favelas, assim como nos centros de operação policial. Também é importante que haja prevenção e reparação, isto é, políticas que reduzam letalidade e reconstruam laços comunitários. Necessário também os investimentos sociais, como estratégias de educação, atividades de cultura e lazer de modo a curar e tratar as consequências dos traumas urbanos. Cessar o fogo não significa instaurar a paz. A paz exige dignidade.

Se toda operação é anunciada como vitória contra o crime, quem celebra as vidas que continuam respirando, mas com medo de abrir a janela? O que acontece com quem acorda no dia seguinte e precisa caminhar sobre os destroços emocionais de uma guerra que ninguém reconhece formalmente? Que país é esse onde parte da população precisa viver com o corpo encolhido, esperando o próximo tiro?

Quando o Estado escolhe políticas de confronto permanente, ele mesmo se torna fonte de trauma. Ele cria um abismo: cidadãos que devem ser protegidos passam a ser tratados como inimigos a serem subjugados. E isso jamais termina bem.
No Rio de Janeiro de 2025, o verdadeiro desafio é este: proteger vidas significa proteger mentes, memórias, lares, futuros. A favela não pode ser um campo de batalha infinito.

E nenhum trauma é natural demais para continuar invisível.

Fontes:
Agência Brasil. (2025, 28 outubro). Favelas e ONGs sobre mortes no Rio: “segurança não se faz com sangue”. https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-10/favelas-e-ongs-sobre-mortes-no-rio-seguranca-nao-se-faz-com-sangue
Menezes, P. V. (2015). Entre o “fogo cruzado” e o “campo minado”: Uma etnografia do processo de “pacificação” de favelas cariocas (Tese de doutorado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Rodrigues, E. O., & Albernaz, E. (2022). Operações policiais: Uma proposta de exercício multi-situado e multiescalar de regionalização dos impactos da violência armada em favelas durante a pandemia no Rio de Janeiro. Farol – Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 9(25), 611–643.


As opiniões expressas neste artigo são de exclusiva responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, a posição do jornal.

Receba notícias no WhatsApp e e-mail

Fonte: diariodorio.com